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6 de dez. de 2016

Quando a abstração tornou-se abominável

Abominável criado por Wellington de Oliveira Teixeira em 06-12-2016.
Abominável *, criado em 06-12-2016.

O aumento da flexibilidade comportamental faz também vir à baila a prática do oportunismo intra-espécie baseado em engano. É o que se verifica, por exemplo, no caso de algumas variedades de mosca-doméstica nas quais os macho corteja a fêmea oferecendo-lhe como prenda algum alimento. Enquanto a fêmea se delicia e lambuza com a prenda, o macho aproveita para se acasalar com ela. Até aí tudo certo: nenhuma ilusão ou ardil, apenas uma troca tristemente familiar de equivalentes.
O logro só aparece no momento em que surge um macho heterodoxo da mesma espécie que faz a mímica da fêmea interessada, consegue induzir um macho reto a fazer-lhe a oferenda e, na hora do coito, apanha o alimento e chispa para longe. De um pseudotravesti como esse, nem mesmo uma mísera pseudocópula a mosca iludida consegue arrancar…

(Eduardo Giannetti — Auto-engano, p.21-22)


A experimentação simples confirma que o céu mais amplo surge em dia ensolarado, após um de tempestade. Parábola ou metáfora, um conceito a se constituir em aprendizado de vida. Tudo se transforma. Recordei de Iazul, uma linda história aprendida há décadas, e surgiu um sorriso em meu rosto – mas não é por critica ao seu autor.

Seres tornados tão imediatistas, abdicamos do vislumbrar os horizontes, exceto para programar os ganhos financeiros – lição que cada ser humano trabalhador é obrigado a decorar, recitar e praticar, em nome do mercado.

A abstração tornou-se abominável na atualidade por exigir tempo para ociosidade e permitir-se ser conduíte de fluxos da vida: olhar para ver, ouvir para escutar, falar para dizer. Conduzidos, desde a infância, ao ciclo vicioso da repetição, tornamos inominável quem ousar o além disso. Coitados dos avoados, dos estranhos, dos alienados que, continuamente, recebem carga pejorativa de, no mínimo, vagabundos.

Uma sociedade sem pensadores e sem artistas (entre os trabalhadores, fique claro!) é um ideal para qualquer ditadura. Basta quem crie apenas produtivamente.

Contrassenso, ideias e tecnologias inovadoras iniciaram-se com a ficção, criadas para o prazer por Júlios Vernes da vida. Teorias e teoremas inúteis, desqualificados, alçaram-se a paradigmas da contemporaneidade. Acordamos sobressaltados por multiversos (os universos simultâneos), recombinações genéticas e a provocação da atemporalidade linear provocada pelo universo curvo e os buracos de vermes.

Como em uma dor de topada ou outra de maior duração, sem abstrair os aprendizados que nos trazem, erramos e continuamos errando. Queremos aprender a lição e não apreender o acontecimento, o encontro, as potências e despotencializações a que nos submetemos ou somos submetidos.

Aprendemos assim. Reproduzimos assim. Exigimos que continue assim. Afinal reconhecer fracasso de um modelo estruturado para não pensar é algo forte demais para seres comuns ousar. Por isso – hoje mais que nunca — contextualizar, avaliar interesses em jogo e aprender a desaprender são fundamentais.

Sem dúvidas, um processo amedrontador, pois não há garantias de que o novo será melhor – como tudo na vida, é apenas uma tentativa. Mas difere das reproduções por ser algo particular, único, exclusivo, pessoal e próprio que fundamenta a existência de um indivíduo, de um sujeito que se expressa sem submissão.

Exige destronar conceitos e preconceitos. Pior. Força a encarar o repúdio que costumamos dar aos ousados e ultrapassar as rotulações. Mas, repetindo os chavões de forma simples, quem irá preferir ser o diferente, o rejeitado, aquele que não se encaixa nos padrões?

Talvez tenha sido essa a 'intenção' da Ordem natural ao produzir o processo da puberdade, refletido em contextos mais amplos na adolescência. Uma ordem que se quebra, que se volta contra si mesma em prol da transformação e do amadurecimento. Os demais processos de vida são graduais, este exige rapidez e é arrebatador, expansivo, ousado, iconoclasta; exige uma radical reavaliação dos preexistentes em função de um futuro – inclusive, na escala de espécie.

A produção de valores precisa de condições favoráveis, do contrário, resulta em seres replicantes. Cópias sociais, como clones genéticos. Há os que louvam essa forma de ser: o Ser tornou impeditivo o ser autêntico.

Mas, quando observo meticulosamente um adolescente, para além da 'aborrescência' que isso causa aos que desejam ardentemente o ordinário, vejo o extraordinário: o poder de ser suplantar o poder de estar por meio do poder de reestruturar o estabelecido.

Não há dúvidas quanto aos riscos que existem na suplantação de limites, das fronteiras, quando se aventura às descobertas singulares. Aqui é onde entram as tais condições favoráveis que citei a pouco. A rigorosidade aliada à permissividade é uma proposição de equilíbrio em tudo. Cada expansividade exige a transformação em todos os níveis, assim como, braços e pernas maiores geram desequilíbrios e exigem o aprendizado do reequilíbrio.

O redimensionamento da vida (a própria e em sociedade) é algo fantástico porque abre as portas para o infinito: avançar, pelo desequilíbrio, em equilíbrio constante. Como andar de bicicleta.

Wellington de Oliveira Teixeira, em 06 de dezembro de 2016.

* Qualquer um que deseja alcançar um determinado grau de autenticidade precisa ultrapassar o discurso conservador, baseado em engano – a vida de aparências. A hipocrisia acéfala e esquizofrênica foi produzida e se sustenta na midiotização — a adoção passiva e irrestrita de padrões televisivos.
A busca por autenticidade não será bem sucedida sem o processo de desconstrução das máscaras pessoais e familiares, a partir da abstração e do questionamento das produções midiáticas de verdade e de felicidade instantânea.
Encontramo-nos em um momento onde é extremamente desejável um toque de rebeldia, como a dos adolescentes.

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